Blog do Jornal Laboratório FACHA

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Uma publicação dos alunos do Curso de Comunicação Social da
Facha - Faculdades Integradas Hélio Alonso
Unidade Botafogo.

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25/05/2008

Jornal Laboratório - Maio de 2008. Conto vencedor do concurso "Contos do Rio", de O Globo

A aluna da FACHA Daniele Garcia foi a vencedora do concurso "Contos do Rio" do caderno "Prosa e Verso" de O Globo com o conto abaixo. Ver matéria na página 5 do Jornal Laboratório.

Renascimento

Renato estava morto. “Nada se encaixa”, dizia Daniel, enquanto dividia um biscoito recheado e lambia o creme de baunilha. Limpou os dedos nos papéis que contavam a história do defunto, reduziu tudo a pedacinhos e jogou no lixo. Renato ainda pôde ouvir o ruído das folhas sendo rasgadas, quando os sons do escritório se confundiram com os de ondas batendo na praia. De repente, estava no meio do mar, a alguns metros da Praia do Flamengo. Nadou até a areia – não conhecia essa habilidade – e se sentou ali. Meditava sobre sua nova condição: um personagem de ficção que acabavam de descartar.

Ninguém havia notado sua chegada.Alguns caminhavam, indiferentes. Outros estavam preocupados com o próprio corpo: mediam os braços e as pernas, pulavam, como que para calcular o peso, acariciavam-se. Renato fez o mesmo. Depois, cruzou o Aterro e viu seu reflexo no retrovisor de um carro. Achou-se bonito. Sabia que Daniel o fizera jovem e de corpo atlético, mas a visão de si mesmo era nova. Soltou um riso alto e levou as mãos à boca. Possuía instintos humanos e uma bela voz de barítono.

A passagem para aquele universo o excitava. Viu que o lugar era habitado somente por personagens de ficção mortos: defuntos oficiais, que tiveram vida e morte publicadas, e os desconsiderados por seus criadores, como ele.

Resolveu procurar por Cidinha. Quis saber se ela também estava surpresa. Já previa a curiosidade da moça com a própria silhueta, as cócegas e os risinhos quando ele a tocasse. Precisava ver, com os novos olhos, a “pequena de cabelos compridos” criada para ele.

Contornou a Praça Paris e seguiu pelas ruas da cidade. Distraiu-se com um guarda sem rosto que apitava incessantemente em uma esquina da Rua Riachuelo. Só então percebeu a enorme distância percorrida até a Ladeira de Santa Teresa. Reconheceu o banquinho de cimento onde namorava Cidinha todos os dias já havia seis meses. Sentou-se e esperou.

Renato não se incomodava com o fato de ter sido descartado pelo seu criador. Sentia-se livre, capaz de escrever a própria história: “meu nome significa renascido”. Pensou nessa ironia e se achou superior.

O novo habitante se admirava com os fenômenos do lugar. Pôde ver – todos se reconhecem ali – o ilustre Rubião, personagem de Machado de Assis, subir a Ladeira. Renato assistia, então, à mudança do cenário: surgiam cupês conduzidos por parelhas de cavalos, donzelas carregando sombrinhas, homens de bengala. Parecia uma ala de escola de samba em torno de Rubião, que procurava por uma Sofia que jamais sairia do livro.

O desfecho daquela visão o assombrou. Cidinha também poderia não vir. Pensou em procurá-la no mar, mas já era noite. Teve certeza: ela não havia sido descartada. Maldito Daniel.
Pensava sobre o destino de Cidinha. Eram muitas as possibilidades: poderia estar com outro homem em uma história policial ou ter virado freira. Renato passava em frente ao Convento das Carmelitas imaginando sua namorada vestida com um hábito de Irmã Aparecida, dentro de um livro qualquer. Tremeu.

Foi para a Lapa. Ouviu o psiu de um sexagenário sentado à mesa de um bar, cavaquinho na mão. Renato olhou em volta para conferir em que época estava. Era a Lapa que conhecia.

Aceitou uma dose de cachaça oferecida pelo sambista sem nome. “Ouve esse samba”, dizia o homem. “É uma homenagem às tanajuras: as que a gente caçava pra comer com farofa e as que botam pra quebrar no miudinho”. Gargalhou e olhou o traseiro de uma mulher que sambava ao lado. Cantou alto a rima: “Nas tardes de verão da infância de muita gente, não faltava diversão na brincadeira inocente”. O velho já havia desistido de escrever o resto. “Isso aqui é muito bom, não quero saber de mais nada”. Renato imaginou como seria ouvir o mesmo samba, eternamente, longe da sua Cidinha. Tomou um porre.

Acordou na Praia do Flamengo sem saber como. Agora entendia o que eram enxaqueca e amnésia alcoólica. Quando se levantou, deu de cara com o sambista: “uma moça te procurou a manhã inteira. Cabelão enrolado. Tetéia. Disse que te conheceu aqui na praia”. Renato deu um pulo e correu pela orla. “Um peixão”, continuava o velho, limpando a areia dos sapatos.

Encontrou Cidinha ensopada. Era a segunda vez que acordava no meio do mar, andava sem rumo pela praia e voltava para casa, à noite. Trajava o mesmo vestidinho azul de quando se conheceram e trocaram telefones. Ela se lembrava apenas daquele encontro informal na praia, não sabia nada sobre Santa Teresa e só falava de lugares e pessoas que ele desconhecia.

Passaram a tarde juntos. Renato a convidou para conhecer a Santa Teresa dos dois. Foram ao Parque das Ruínas. Ela morria de rir com personagens antigos que mudavam o cenário, e ele a admirava: era mesmo linda. Renato deduziu que o nome de Cidinha aparecia em alguns dos rascunhos que Daniel havia descartado. Assim, ela poderia transpor os dois mundos. Só que nada disso tinha importância agora.

Terminaram o dia na Chácara do Céu, apreciando a vista dos Arcos da Lapa e da Ponte Rio-Niterói. Trocaram beijos e carícias. Renato já não se sentia superior. Era confortável estar preso à sua história.

Assim que o sol desapareceu atrás dos prédios do Centro, Cidinha seguiu, mecanicamente, em direção à Praia do Flamengo. Quando pisou a água, já era noite. Entrou no mar e sumiu.
A mesma cena se repete há anos: todas as manhãs, Renato espera por Cidinha. Ela surge do mar, com o mesmo vestido encharcado, sem se lembrar da véspera. Ele a conduz pelos mesmos caminhos e a vê partir à noite. Poderia mudar tudo, se quisesse. Ir a outros lugares, desistir daquilo. Mas Renato não quer. Prefere renascer ao lado dela todos os dias.

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